O Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 1.443 pessoas em situação análoga à escravidão entre 1º de janeiro e 14 de junho deste ano. É quase o dobro do total de 771 resgates feitos em todo o primeiro semestre de 2022.
Os registros cresceram especialmente após a liberação de 207 trabalhadores terceirizados, em fevereiro, que estavam em condições degrantes de trabalho e moradia na safra de uva para as vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha.
Os dados oficiais apontam um aumento de casos da chamada escravidão moderna no Brasil.
Para o secretário de Inspeção do Trabalho do Ministério, Luiz Felipe Brandão, a mudança de governo teve um caráter mobilizador: “Mexeu com o espírito coletivo dos envolvidos. Com a maior divulgação do nosso trabalho, aumentam denúncias e investigações, gerando maior número de resgates”, disse.
Fiscalização aumentou no governo Lula
Os números comprovam. A fiscalização aumentou desde o início do governo Lula (PT). Até 14 de junho foram realizadas 174 ações, contra 63 no mesmo período de 2022.
Os 1.443 resgates de trabalhadores e trabalhadoras são o maior resultado dos últimos 12 anos, só não superando o do primeiro semestre de 2011, quando 1.465 trabalhadores foram encontrados em condições análogas à escravidão.
Segundo a doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e autora do livro “Entre o Silêncio e a Negação: Trabalho Escravo Contemporâneo sob a ótica da população negra” (2019), Raissa Roussenq, há uma retomada do combate a esse crime no país,.
“O Brasil já foi referência mundial no tema, mas isso foi prejudicado nos últimos anos, com os entraves à publicação da Lista Suja do Trabalho Escravo (2017) e a extinção do Ministério do Trabalho (em 2019 e recriado em 2021), por exemplo”, explicou.
Reforma trabalhista precarizou mundo do trabalho
Para Roussenq, a reforma trabalhistas feita no governo ilegítimo de Michel Temer, em 2017 também contribuiu para maior vulnerabilidade de trabalhadores e aumento de casos.
“A reforma favoreceu a precarização dos direitos trabalhistas, enfraquecendo mais quem já estava em posição frágil no mercado. Isso, aliado à crise econômica, torna o cenário propício para empresários que desejam se valer do trabalho escravo”, avaliou.
Já a professora de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Lívia Miraglia, disse que sempre existiram casos de trabalho análogo à escravidão no país, com raízes na história do Brasil e nas relações socioeconômicas que perduram até hoje.
“Este tipo de trabalho tem cor, classe e gênero. Quanto maior a crise econômica, maior o número de pessoas nessa situação”, ressaltou.
Muitos trabalhadores nem sequer reconhecem que estão em situação análoga à de escravos, em especial mulheres em serviços domésticos.
“Temos visto crescer essa consciência, mas não a ponto de a grande maioria das denúncias vir dos próprios trabalhadores. É impressionante que, mesmo quando a fiscalização chega, há mulheres que não querem ir embora, não enxergam outra vida além daquilo”, afirma Miraglia, também coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG.
Conforme ela, a repercussão dos episódios tem ampliado a consciência. “O grande número de casos que vem sendo noticiados fez aumentar exponencialmente o número de denúncias vindas dos próprios trabalhadores”.
Lei Áurea não trouxe igualdade
Em 2023, completaram-se 135 anos da assinatura da Lei Áurea, uma decisão resumida em uma linha: “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”. A abolição não foi suficiente para incluir negros e negras na sociedade brasileira e é questionada até hoje pelo movimento negro.
“O Brasil nunca fez autocrítica em relação às dimensões estruturais que a escravidão teve na construção material e simbólica da nação”, disse a professora e historiadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ynaê Lopes dos Santos. Segundo ela, isso faz com que o entendimento sobre o que é trabalho digno seja ainda incipiente no país.
Para a professora da UFF, o Brasil só vencerá essa chaga quando investir em igualdade. “Vivemos em uma sociedade que não é escravista, embora já tenha sido, mas desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas permitem que pequenos núcleos de escravidão existam e sejam lucrativos”.
Da Redação da CUT com informações de Nadine Nascimento / Folha de S.Paulo