Dados divulgados nesta terça-feira (21) pela SOS Mata Atlântica mostram que o Brasil conseguiu reduzir em 27% o desmatamento no bioma ao longo do ano passado, em comparação com dados de 2022. Houve uma queda de 20.075 hectares destruídos para 14.697 em 2023.
No entanto, o avanço do agronegócio nas regiões de divisa com Cerrado, Caatinga e Pantanal impediu que o balanço definitivo fosse positivo.
“Esse é o grande vilão do desmatamento da Mata Atlântica, hoje, assim como da Caatinga, do Pantanal e do Cerrado”, afirma Luís Fernando Guedes Pinto, diretor executivo da SOS Mata Atlântica, referindo-se à expansão da agropecuária brasileira.
A ONG utiliza duas ferramentas de análise de desmatamento. Um deles é responsável por observar “florestas maduras”, explica o diretor da entidade em entrevista ao programa Bem Viver desta terça.
Ao mesmo tempo, é utilizada outra análise capaz de observar regiões menores, com menos de um hectare, que permite notar áreas que estão em regeneração, por exemplo. Foi esta fotografia que revelou como o desflorestamento se expandiu em áreas onde o agronegócio atua.
“Os dois sistemas apontam uma boa notícia que é uma redução do desmatamento numa faixa contínua muito grande da Mata Atlântica, e um aumento do desmatamento nessas transições que estão localizadas na Bahia, no Piauí e no Mato Grosso do Sul.”
Cruzando estes dois dados, a conclusão é que houve um aumento no desmatamento na região.
Para o diretor da entidade, o resultado mostra como a Lei da Mata Atlântica está sendo aplicada e fiscalizada nos estados que compreendem o bioma, ou seja, toda faixa litorânea do país, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul. Onde a lei não é aplicável, o desmatamento está crescendo.
Embora esse seja um entrave difícil de combater na opinião do especialista, que cita a força da bancada ruralista no Congresso, ele acredita que “temos tudo para alcançar o desmatamento zero na Mata Atlântica”.
“É a região do Brasil que a gente tem a melhor governança, que a gente tem recursos, que a gente tem pesquisa, que a gente tem Estado, que a gente tem governos que podem fazer essa mudança”, explica.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Por um lado, o estudo mostra uma redução significativa no desmatamento. Mas ao mesmo tempo houve aumento analisando outros dados. O que podemos aferir sobre o relatório, afinal?
Luís Fernando Guedes Pinto: Isso realmente tem uma certa complexidade. O Atlas da Mata Atlântica, que é essa colaboração da SOS Mata Atlântica e do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], mapeia todos os fragmentos de floresta da Mata Atlântica acima de 3 hectares. Ele detecta, então, desmatamentos acima de 3 hectares.
A gente diz que o Atlas enxerga as florestas maduras da Mata Atlântica, que somadas todas representam 12% da cobertura florestal original do bioma. Vamos lembrar que a Mata Atlântica é a floresta, o bioma que a gente mais devastou ao longo da nossa história.
Já o SAD, que é o Sistema de Alertas do Desmatamento, é uma colaboração da SOS Mata Atlântica com o MapBiomas. Ele mapeia qualquer fragmento de floresta a partir de meio hectare.
Então ele enxerga fragmentos seis vezes menores do que o Atlas enxerga, é um óculos muito mais potente que. Ele detecta desmatamento dez vezes menores do que o Atlas detecta. No final, os dois se complementam, já que o Atlas pega florestas maduras e o SAD pega as florestas jovens e as florestas maduras, as áreas em regeneração.
Mas o importante é que os dois sistemas apontam a mesma tendência. De 2022 para 2023, houve uma diminuição significativa do desmatamento na região contínua da mata atlântica que vai do Rio Grande do Sul até do Rio Grande do Norte, com uma diminuição importante em regiões que são desmatamentos histórico muito alto, como Santa Catarina, Paraná e Minas Gerais.
E os dois sistemas apontam um aumento do crescimento nas transições da Mata Atlântica para o Cerrado e nos encraves de Mata Atlântica, que são ilhas de Mata Atlântica no Cerrado, na Caatinga e também nessa transição para o Pantanal.
Ou seja, os dois sistemas apontam uma boa notícia que é uma redução do desmatamento numa faixa contínua muito grande da Mata Atlântica, e um aumento do desmatamento nessas transições que estão localizadas na Bahia, no Piauí e no Mato Grosso do Sul.
Na soma de tudo, diminuiu o desmatamento das florestas maduras nos maiores fragmentos, mas quando a gente soma tudo, houve, infelizmente, um pequeno aumento de um ano para o outro. Um aumento do desmatamento total, com uma região de diminuição e uma região de aumento.
Essa região que aumentou, aumentou muito, e a gente enxergou muito o desmatamento nessas regiões da Bahia, do Piauí, do Mato Grosso do Sul, que compensou essa diminuição do desmatamento nas outras regiões.
É seguro afirmar, então, que o combate ao desmatamento na Mata Atlântica é satisfatório?
Isso é uma ótima pergunta. Sim, houve uma diminuição em função do aumento da fiscalização, da aplicação da lei da Mata Atlântica, em regiões onde a lei não é contestada, onde ela é aplicada, onde não há nenhuma contestação sobre a existência da Mata Atlântica, isso diminuiu.
Então sim, isso é resultado do aumento da fiscalização. Essas regiões de transição com a Caatinga, como Pantanal e com e com o Cerrado são regiões em que não se aplica a Lei da Mata Atlântica.
Vale importante lembrar a Mata Atlântica é um bioma reconhecido como patrimônio nacional pelas Constituições e é o único bioma que tem uma lei para sua proteção que só permite o desmatamento de áreas com fins de utilidade pública ou interesse social, que não é o caso da destruição da floresta para a expansão da agropecuária.
Então nessas regiões aí da fronteira agrícola brasileira da Bahia, do Piauí, do Mato Grosso do Sul, nós não temos a fiscalização adequada, pois não há uma aplicação rigorosa da lei da Mata Atlântica.
Então a sua pergunta é sim, em uma determinada região do país a fiscalização melhorou, aumentou, ficou mais rigorosa e tem ainda regiões em que ela ainda não é aplicada adequadamente.
Foi possível identificar qual é a causa do desmatamento nessas regiões identificadas?
O principal vetor é a expansão da agropecuária brasileira. A gente está falando das regiões da fronteira agrícola brasileira onde a gente ainda está derrubando floresta, seja Mata Atlântica, Pantanal, Caatinga ou Cerrado. Sempre para plantar grãos, soja, um pouco para silvicultura e também pra expansão da pecuária.
Esse é o grande vilão do desmatamento da Mata Atlântica, hoje, assim como da Caatinga, do Pantanal e do Cerrado.
Vocês se preocupam como o agronegócio transmite uma mensagem de ser motor do desenvolvimento do país, mas tem essa responsabilidade de ser o grande vilão das nossas florestas?
Claro, porque a Mata Atlântica é o bioma que a gente mais destruiu ao longo da nossa história. Cada pedaço que a gente destrói faz muita falta para combater a crise climática e a crise da biodiversidade.
Nós sabemos que não é necessário derrubar mais floresta, nem nenhum ecossistema nativo do Brasil para a gente aumentar a produção agropecuária. A gente tem as pastagens com baixa produtividade, a gente tem muita terra aberta, mal ocupada, com baixíssima produtividade que poderia ser usada para aumentar a nossa produção
Além disso, ao desmatar a Mata Atlântica, a gente está plantando tragédias para o futuro, a gente está emitindo o gás de efeito estufa, está intensificando e acelerando a mudança climática, criando mais eventos climáticos intensos e frequentes, como agora está acontecendo no Rio Grande do Sul.
A Mata Atlântica, é uma região onde tem muito risco, onde tem acontecido muitas tragédias. A gente está expandindo a agricultura em regiões de risco para a própria agricultura.
Então derrubar Mata Atlântica compromete o nosso futuro de ter água, de ter energia elétrica e até de ter comida e produção agropecuária porque a gente está acabando com a floresta que dá serviço ecossistêmico para 70 % da população brasileira.
Você atribuiu muito do controle do desmatamento na Mata Atlântica por conta de ter uma lei específica que está sendo respeitada. Seria o caso de cada bioma ter, então, uma legislação própria?
Olha, a lei da Mata Atlântica é uma inspiração para os outros biomas brasileiros, porque a gente precisa alcançar o desmatamento zero e nós não temos instrumentos para isso ainda.
Na Mata Atlântica a gente já tem disso. Ela não é uma lei que garante o desmatamento zero, mas após a sua promulgação, em 2006, houve uma diminuição muito grande do desmatamento. Ele segue nessa tendência de desmata de redução, indo para um desmatamento zero.
Sem dúvida é algo que tem que ser replicado porque hoje a gente tem o código florestal para os outros biomas que permitem o desmatamento. O Brasil está com compromisso mundial e com a nossa própria sociedade de zerar o desmatamento até 2030. E isso não é porque é bonito [alcançar o desmatamento zero], mas porque a gente precisa alcançar o desmatamento zero para evitar novas tragédias, para evitar a mudança climática.
Então certamente a Lei da Mata Atlântica é um começo pra inspirar algo pra gente alcançar o desmatamento zero em todo o Brasil. A gente espera alcançar o desmatamento zero, primeiro, na Mata Atlântica, porque foi essa floresta que a gente mais devastou, que a gente depende dela pra maior parte da população, e onde a gente já tem uma lei.
Então a Mata Atlântica pode despontar como o primeiro bioma no Brasil a alcançar esse marco de desmatamento zero, se as coisas continuarem acontecendo nessa perspectiva?
Exatamente. A gente tem tudo para alcançar o desmatamento zero na Mata Atlântica. É a região do Brasil que a gente tem a melhor governança, que a gente tem recursos, que a gente tem pesquisa, que a gente tem Estado, que a gente tem governos que podem fazer essa mudança.
E além disso, a gente tem que pensar na restauração da Mata Atlântica, não só parar de desmatar, mas restaurar o que a gente derrubou, tanto para proteger a nossa água, para proteger os nossos rios e proteger a nossa biodiversidade e também para evitar novas tragédias e retirar carbono da atmosfera.
Essa é uma solução para enfrentar a crise do clima e a crise da biodiversidade que são sérias ameaças para a humanidade hoje, tanto do ponto de vista ambiental, econômico e até da saúde. A gente, agora, sabe que a pandemia, epidemias de dengue, estão muito associadas também ao desequilíbrio dos nossos ecossistemas e da falta da natureza.
As políticas de desmatamento da Mata Atlântica podem ser reaplicadas na Amazônia?
A gente tem que resolver a questão fundiária. É a primeira coisa do Brasil para resolver a questão do desmatamento, principalmente na Amazônia. A gente precisa de novos instrumentos para manter a floresta de pé.
Mas para isso a gente precisa resolver uma questão no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas, porque lá vai tudo na contramão. A gente tem projetos de lei sendo aprovados ou sendo submetidos tanto em Brasília quanto em vários estados que diminuem e enfraquecem a legislação ambiental, que permitem cada vez mais desmatamento.
É uma grande contradição, um contrassenso enorme, a gente vivendo em tragédia todo dia, entendendo que precisa acabar com o desmatamento, tendo inclusive esse compromisso, mas, ao mesmo tempo, projetos de lei, apoiados pela bancada ruralista e por uma série de grupos que flexibilizam a nossa proteção ambiental, que podem gerar muito mais desmatamento e muito mais tragédias pela frente.
Então, sim, a gente precisa melhorar as nossas leis enquanto a gente tem proposta para piorar o que a gente já tem.
Nas primeiras gestões do governo Lula, junto com Marina Silva, o governo conseguiu fazer uma redução do desmatamento na Amazônia que virou referência internacional. Quase 20 anos depois, o cenário no país é outro, por exemplo, por conta da bancada ruralista que você já nomeou nesta entrevista. Com este contexto, lhe parece possível o governo repetir os mesmos feitos do passado?
Olha, o governo Lula colocou a questão ambiental com uma centralidade, tanto na sua campanha, quando ainda era uma candidatura à presidência, quanto logo no início do governo, falando de chegar no desmatamento zero.
Houve uma mudança enorme do governo Bolsonaro para o governo Lula, isso é inquestionado. De postura, de entendimento, de uma retomada da política ambiental. Mas o governo está tendo muita dificuldade de seguir com essa agenda.
Primeiro por essa ampla frente que é esse governo, tem muitas contradições entre as questões ambientais. Acho que o caso do petróleo é bem evidente, né? Que a parte ambiental do governo deixa muito claro que a gente tem que parar de explorar petróleo e tem parte do governo que entende que precisa explorar petróleo.
Então, isso ainda é uma bola dividida, essa promessa do presidente ainda está sendo questionada dentro do próprio governo.
Mesmo com a crise do Rio Grande do Sul, agora, tem toda essa dificuldade no Congresso sobre a pauta ambiental. O governo não tem a maioria [no Congresso] e tem cedido para conseguir avançar em algumas pautas.