Por Julimar Roberto*
O Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, marca a data da morte de Zumbi dos Palmares. O líder do Quilombo dos Palmares e um dos maiores lutadores contra a escravização negra no Brasil, nasceu livre no quilombo em 1655 e, após escapar do cativeiro na infância, tornou-se seu principal líder após a morte de Ganga Zumba, ao lado de sua companheira Dandara. Sob a liderança de Zumbi e Dandara, Palmares resistiu a diversas expedições militares coloniais e recusou a submissão à Coroa portuguesa em nome da liberdade plena. Zumbi foi assassinado em 20 de novembro de 1695, depois de anos de luta contra o regime escravocrata. A história da coragem e resistência de Zumbi inspira, séculos depois, as lutas atuais do povo negro e da classe trabalhadora por justiça e igualdade. Em reconhecimento a esse legado, a data de sua morte foi instituída oficialmente como Dia da Consciência Negra (Lei 12.519/2011) e, a partir de 2024, tornou-se feriado nacional, convidando todo o país a refletir sobre a dívida histórica com a população negra.
Mas passados 137 anos da abolição formal da escravidão, a realidade do mercado de trabalho brasileiro ainda reflete profundas desigualdades raciais. A população negra representa a maioria da força de trabalho do país – mais da metade dos trabalhadores brasileiros – porém permanece concentrada nos postos mais precários e de menor remuneração. Dados do Ministério do Trabalho mostram que a taxa de desemprego da população negra é muito superior à da população branca, em especial entre as mulheres negras. No 2º trimestre de 2024, enquanto os homens não negros enfrentavam uma taxa de desemprego de 4,6%, para as mulheres negras o índice chegava a 10,1%, mais que o dobro. Essa disparidade evidencia como a cor da pele continua limitando o acesso a empregos com melhor remuneração em nossa sociedade estruturalmente racista.
A desigualdade salarial também escancara o racismo presente nas relações de trabalho. Em média, um trabalhador negro ganha apenas cerca de 58% do salário de um trabalhador branco. Mesmo entre pessoas com nível superior, os negros recebem menos. Estudos do Dieese apontam que um profissional negro com diploma universitário pode ganhar cerca de 32% a menos que um branco com a mesma formação. Ao longo de toda a vida laboral, essa diferença se acumula e estima-se que trabalhadores negros deixam de ganhar centenas de milhares de reais em comparação com seus pares brancos devido à discriminação persistente. Em nada nos surpreende, portanto, que mulheres e homens negros componham 80% dos 10% mais pobres da população, enquanto os brancos são 70% entre os 10% mais ricos, como indica o Ipea. Portanto, só nos resta concluir que a pobreza no Brasil tem cor e classe: é esmagadoramente negra e trabalhadora.
Além de receberem salários menores, pessoas negras enfrentam barreiras para ascender a cargos de liderança. Mesmo sendo 56% da população, negros ocupavam apenas cerca de 33% dos cargos gerenciais em 2023. Em outras palavras, os trabalhadores negros ficam concentrados na base da pirâmide ocupacional. Nas profissões de maior salário, os negros são minoria – apenas 27% dos ocupados -, enquanto representam 70% dos trabalhadores nas dez ocupações de menores rendimentos, ainda segundo informações do Dieese. Outro dado gritante é que uma em cada seis mulheres negras é empregada doméstica – muitas sem carteira assinada, recebendo em média um salário muito abaixo do mínimo.
Essa sobrerrepresentação em empregos precarizados é herança direta do passado escravocrata e resultado do racismo estrutural que reserva à população negra as piores condições de trabalho e renda. A exploração, em casos extremos, lembra tragicamente a escravidão de outrora. Entre 2002 e 2024, 66% das trabalhadoras e trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão no Brasil eram negros. Ou seja, até nas formas mais abjetas de exploração contemporânea – jornadas exaustivas, trabalho forçado e degradante – as principais vítimas seguem sendo pessoas pretas. Essa realidade chocante confirma que a abolição inacabada ainda permite a perpetuação de uma “escravidão moderna” que recai desproporcionalmente sobre a classe trabalhadora negra.
Mas teimamos e resistimos. No campo da educação, houve conquistas importantes nas últimas décadas, fruto de lutas sociais como a implementação das cotas raciais nas universidades. Segundo o Ibge, atualmente, jovens pretos e pardos já compõem a maioria dos estudantes que ingressa nas universidades públicas federais, algo impensável no passado. Essas políticas afirmativas elevaram a escolaridade média da população negra – a taxa de conclusão do ensino médio e o acesso ao ensino superior vêm crescendo mais rapidamente entre negros do que entre brancos.
Apesar desses avanços, a desigualdade educacional está longe de ser superada. Os negros ainda estão sub-representados nos cursos mais prestigiados e nas universidades privadas, e enfrentam maiores dificuldades para concluir os estudos devido à pobreza e à necessidade de trabalhar cedo. Entre os jovens de 18 a 24 anos, a proporção de brancos que concluíram ou frequentavam o ensino superior (36,1%) era quase o dobro da de jovens negros (18,3%). Da mesma forma, a taxa de conclusão do ensino médio entre pretos e pardos (cerca de 62%) permanece inferior à dos brancos (77%). Essas diferenças refletem o legado de exclusão, com escolas de pior qualidade nas periferias, necessidade de conciliar estudo e trabalho desde cedo e o racismo institucional que desestimula a permanência do jovem negro na sala de aula. Sim, a educação brasileira avançou, mas a cor ainda define oportunidades – e limita o futuro de milhões de jovens negros.
A face mais cruel do racismo estrutural manifesta-se na violência cotidiana contra a população negra. Os números são alarmantes e revelam aquilo que movimentos sociais denunciam como um verdadeiro genocídio da juventude negra. De cada dez pessoas assassinadas no Brasil, aproximadamente oito são negras. Entre os jovens, essa violência é ainda mais intensa. Ser um jovem negro no Brasil equivale a enfrentar um risco muito maior de morte violenta em comparação a um jovem branco. Essa realidade sangrenta não é obra do acaso, mas sim produto de séculos de desumanização da população negra e da negligência do Estado com as periferias.
A violência policial, em particular, explicita o racismo nas instituições de segurança. Em vários estados, a letalidade policial incide quase exclusivamente sobre suspeitos negros, reflexo de um padrão de abordagem discriminatório e mortal, como testemunhamos no mês de outubro no Rio de Janeiro, durante a “Operação Contenção”, considerada a mais letal da história do estado, com 121 mortos. Investigações de organizações de direitos humanos e da Ouvidoria da Defensoria Pública indicam que a esmagadora maioria das vítimas era negra, jovem e pobre, com um terço delas tendo até 25 anos. Apesar de o governo estadual alegar que a maior parte dos mortos tinha ligação com o tráfico, os dados revelam que 17 vítimas não tinham qualquer antecedente criminal, e nenhuma delas constava na lista original de suspeitos da operação. Para o movimento negro e entidades de justiça, o massacre evidencia uma política de extermínio racializada, em que vidas negras continuam sendo descartadas em nome de uma pseudo segurança pública.
Diante desse quadro de desigualdade e opressão, a resposta só pode ser a organização coletiva e a luta combativa. A história nos ensina que nenhum direito dos trabalhadores foi conquistado sem mobilização. Da mesma forma, a libertação do povo negro sempre esteve atrelada à resistência organizada – dos quilombos de ontem às greves e protestos de hoje. Por isso, é fundamental que os sindicatos e movimentos sociais incorporem a luta antirracista em suas pautas de forma central, e não apenas como um tema secundário. O racismo estrutural é uma ferramenta de exploração que divide a classe trabalhadora, barateia a força de trabalho negra e justifica a brutalidade contra os oprimidos.
Combater o racismo fortalece toda a classe trabalhadora em sua por direitos e contra as injustiças do sistema. Nas campanhas salariais, na defesa dos direitos trabalhistas, na briga por políticas públicas, é preciso denunciar e enfrentar as desigualdades raciais. Os sindicatos devem incentivar a participação e a liderança de trabalhadoras e trabalhadores negros, dando voz a quem sente na pele a discriminação no chão da fábrica, no comércio, nos serviços.
No Dia da Consciência Negra, a Confederação dos Trabalhadores no Comércio e Serviços da CUT (Contracs) conclama cada trabalhador e trabalhadora a refletir e agir. Assim como Zumbi dos Palmares não se curvou diante das correntes opressoras, nós não podemos nos curvar diante do racismo e da exploração atuais. Cada local de trabalho pode se tornar um quilombo de resistência, onde a dignidade prevaleça sobre o preconceito. É hora de levantar a voz contra as injustiças, organizar nossas trincheiras e lutar por uma sociedade em que nenhum trabalhador ou trabalhadora fique para trás. A verdadeira consciência negra é também consciência de classe. É entender que a libertação do povo negro caminha lado a lado com a emancipação de toda a classe trabalhadora. Juntos, vamos transformar a indignação em luta e a memória de Zumbi em ação coletiva, até que possamos, finalmente, romper todas as correntes que nos prendem. Se povo unido, jamais será vencido, um povo unido contra o racismo e o capitalismo será capaz de construir um Brasil mais justo, livre e igualitário.
Viva Zumbi! Viva Dandara! Viva o povo negro!
* Julimar é comerciário e presidente da Contracs-CUT

