segunda-feira, outubro 7, 2024

Lixeira química: Brasil poderá vir a ser o polo mundial da fabricação de agrotóxicos

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O Brasil aprovou 2.170 novos agrotóxicos para uso no país entre 2019 e 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). E já liberou mais 103 de janeiro para cá. Dos liberados no governo anterior, 1.056 (49% do total) foram banidos na União Europeia (UE). Ou seja, não puderam sequer ter registros por lá. E do total desse princípios ativos barrados nesses países, 88 são permitidos pelas autoridades brasileiras, conforme um levantamento recente da professora aposentada Sonia Hess, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Especialista no tema e autora de diversas pesquisas e pareceres técnicos, a professora é categórica. “O Brasil é a lixeira química do mundo”, afirma à RBA. Sonia se refere principalmente aos efeitos nocivos à saúde humana e animal desses produtos que levaram os europeus a vetá-los. Mas que o Brasil libera sem a menor dificuldade.

São efeitos agudos e crônicos tanto pela ingestão dos alimentos que receberam esses produtos, como pela exposição a eles. Exposição essa que pode ser no ambiente de trabalho, no caso dos agricultures. Ou mesmo daqueles que, mesmo sem trabalhar diretamente na lavoura, estão sujeitos às nuvens de veneno em pulverizações. E esse risco inclui até crianças em escolas nas zonas rurais.

Na UE, como lembra a professora, as autoridades prezam pelo rigor e levam a sério os resultados das pesquisas científicas que confirmam esses perigos. Como a associação constatada entre essas substâncias e o desenvolvimento de diversos tipos de câncer, malformações fetais e alterações no sistema nervoso central, no sistema imunológico e no hormonal.

Alterações essas que levam a diversos outros problemas. A lista de malefícios causados por agrotóxicos vai muito além. Inclusive para o meio ambiente.

Permissividade para o setor no Brasil

Já o Brasil segue caminho oposto, com total flacidez em suas regras. Fora os incentivos fiscais, os fabricantes contam com a permissividade em seu favor:

A autorização é por prazo indeterminado, o que na prática acaba se tornando ad eternum.
Não há observância dos avanços científicos sobre os efeitos adversos na saúde humana e no meio ambiente nem na reavaliação de produtos e nem diante de um fato novo.
Há problemas na qualidade das pesquisas, sendo aceitos estudos realizados somente pelos fabricantes, com limitações metodológicas.

Não há participação social na tomada de decisão por meio de agências governamentais nesse processo.
O levantamento mostra também que entre esses 2.170 “novos” produtos liberados no governo Bolsonaro – ela ainda não começou os estudos sobre as liberações a partir de janeiro –, há ingredientes ativos produzidos na China e que são proibidos lá. Entre eles o fipronil.

Desenvolvido para matar insetos, formigas e cupins, o fipronil tornou-se conhecido como o terror das colmeias, segundo variados estudos. Em outras palavras, está por trás da mortandade massiva das abelhas, insetos polinizadores imprescindíveis na reprodução de espécies vegetais, principalmente alimentos.

Em agosto passado, a 9ª Vara Federal de Porto Alegre (RS) deu um ano para o Ibama concluir os processos de reavaliação de toxicidade da substância. No entanto, isso sequer havia sido iniciado na época.

Indústria dos agrotóxicos e o grande mercado do Brasil

Outra informação importante trazida pela professora Sonia Hess é que do total liberado entre 2019 e o ano passado, 614 formulações (61%) têm aplicação principal nas lavouras de soja, 443 (44%) de algodão, 428 (42%) de milho e 336 (33%), de cana. Ou seja, embora também tenham uso na produção de arroz, feijão, frutas, hortaliças, esses 1.821 “novos” produtos estão voltados sobretudo para as grandes culturas de exportação. É a indústria de olho nesse grande mercado.

Na avaliação do engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, isso significa dizer que haverá no Brasil mais veneno do tipo que não pode ser usado na União Europeia.

Todos esses produtos e suas variações, combinações e arranjos, na verdade envolvem as mesmas substâncias. “Quando a patente de uma delas perde a validade, muitas outras empresas passam a fabricar venenos com o mesmo princípio ativo, mas com outras roupagens. Afinal, existirão formulações com os mesmos princípios ativos, porém mais concentradas”, disse à RBA.

Isso porque, segundo Melgarejo, em princípio, para sobreviver, os organismos alvo desenvolvem resistência aos agrotóxicos, “o que requer a aplicação de dosagens cada vez mais fortes para fazerem efeito”.

Conforme explicou, suprir essa necessidade de agrotóxicos mais potentes é uma das motivações das liberações dos “novos” agrotóxicos, que na verdade resultam da combinação de velhas moléculas. Ou seja, é o argumento ruralista para a suposta necessidade de aprovação de “agrotóxicos melhores e mais modernos”. “O ‘ser melhor’, aí, tende a ser pior. Mais tóxico na adição de outro princípio ativo ou com maior concentração do mesmo princípio ativo, ou com misturas”.

Pacote do Veneno aguarda aprovação no Senado

Paralelamente a essas liberações todas, avançou no governo de Jair Bolsonaro o chamado Pacote do Veneno. Aprovado na Câmara, o PL 1.459/2022 chegou às portas do plenário do Senado pouco antes do Natal, mas não foi pautado na ultima sessão do ano. O projeto que facilita ainda mais a importação, registro, fabricação, venda, uso, exportação e dificulta a fiscalização desses produtos integra um outro pacote, o “da destruição”. Esse conjunto de projetos que tramita no Congresso assim foi batizado pelas consequências nefastas à saúde e ao meio ambiente.

Pesou a forte mobilização somada a recomendações contra a aprovação. Ainda no governo de Michel Temer (2016-2018), entidades nacionais e internacionais, inclusive a ONU, pediram o arquivamento. As manobras ruralistas que levaram à aprovação na Câmara se repetiram no Senado. Em comissão especial, o relator, senador Acir Gurgacz (PDT-RO), aprovou texto sem debate. Nem sequer ouviu outras comissões relacionadas, como de Meio Ambiente, Direitos Humanos e Legislação Participativa e de Assuntos Sociais.

Desde 2008, o Brasil é o maior importador e consumidor de agrotóxicos da América Latina. Em meio ao mar de veneno, os países que compram produtos brasileiros vão aumentando restrições a esses produtos. Esse descompasso, no entender de Melgarejo, não aponta para prejuízos ao agronegócio exportador, que em tese perderia esse mercado. Isso porque, da mesma forma que faz a China, maior parceiro comercial do Brasil, outros países, inclusive europeus, compram essencialmente produtos para produção de ração animal, como soja e milho.

Lucro do agro, contaminação, doenças e impactos ao SUS

“Esses animais são abatidos no final da juventude, antes de os problemas crônicos aparecerem”, disse, referindo-se aos males causados pelos agrotóxicos. “E além do mais, dessa maneira, esses países estão protegendo suas reservas de água. Mas nós estamos envenenando as nossas. Também estamos fragilizando sistemas imunológicos dos povos que vivem aqui. Vale o mesmo para toda América Latina e África.”

Integrante do Movimento Ciência Cidadã e representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) de 2008 a 2014, Melgarejo apresenta outro motivo de preocupação: a transformação do país em polo mundial de produção desses venenos.

“Ao estimular os agrotóxicos como faz, o Brasil sustenta empregos nas atuais ‘fábricas de lixo’ na Europa”, disse. E no continente em que esses produtos vão sendo banidos, não haverá espaço para elas. “Qual é a proposta do Pacote do Veneno senão transferir essas fábricas para cá?”, questiona.

Sua dedução envolve ainda outros questionamentos. O que justificaria a autorização de uso de centenas de alternativas ineficazes? Se são distintas em termos de impacto sobre a saúde, ou seja, sobre o SUS, ou sobre o chamado Custo Brasil, o que justifica a presença das piores substâncias, em um mercado cujas externalidades afetam a todos?

Falta orientação política para reverter processo

Alternativas ao modelo existem. A mais eficaz é a agroecologia, que experimenta alguns esforços para a transição no país. Há inclusive alguns insumos de base biológica aprovados para proteger culturas. Mas são poucos, de empresas nacionais. Não estão sendo incorporados pelas grandes transnacionais do setor. Ou seja, falta interesse econômico, o que poderia viabilizar as mudanças, mas que tende a ser orientado por uma visão de curto prazo.

Mais do que isso, falta também orientação política. “Precisamos de agendas de médio e longo prazo para mudar a forma de produzir. Esta aí, que promove o aquecimento global, não poderia estar sendo subsidiada. Estamos pagando para encurtar o horizonte de vida. Veja que os adubos minerais ‘naturais’, como o que importamos da Rússia, vão se esgotar”, disse.

“Então uma agricultura que depende dele é sem futuro. Qual a solução proposta? Demolir a Amazônia para aproveitar reservas minerais que existirem lá? Pois isso vai reduzir os serviços ecossistêmicos fornecidos pela floresta, apenas para manter um agronegócio cego para o futuro próximo.”

“Salvar o sistema?”
A saída seria países que, como o Brasil, que se dispõem a absorver todo esse lixo, adotassem políticas mais responsáveis. “Assim, a inteligência humana apresentaria soluções que talvez já existam. Ou, se inexistem, bastaria o fechamento destes mercados para que as pesquisas buscassem outras soluções”, disse Melgarejo, que alerta para uma guerra química em curso. “Ou fazemos isso ou daremos realismo às hipóteses de O Relatório Lugano” comparou.

O engenheiro se refere ao livro (de 1999) de Susan George. A ficção aborda a eliminação de parte da população mundial com o objetivo de salvar o sistema capitalista de um colapso.

“Nesse aterrador livro de ficção, alguém misterioso contrata uma série de profissionais para analisar a situação global e encontrar alternativas para manter o sistema capitalista em funcionamento. A solução encontrada por esses profissionais é dizimar 1/3 da população mundial. Eles não só fornecem a solução, como sugerem as formas de concretizar a barbárie”, diz a apresentação da editora Boitempo.

Da redação da CUT

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